quarta-feira, outubro 24, 2007

Aqui decidi deixar dois poemas. Uma cantiga de amigo, e a letra de uma musica. Quem me lê ou me conhece saberá que o cliche de adequar, por inércia, aquilo que os outros escrevem, ao que no momento nos apetece dizer, não é algo que goste de fazer, ou que tenha essa habito. Faço-o, para alem da beleza de ambos os textos, porque depois da sua leitura conjugada, lendo a mesma palavra, dizendo coisas diferentes, olhei para mim e vi que essa mesma necessidade de conjugação me tem passado ao lado. A mim e a tantos outros como eu que vivem na penúria sem saber o verdadeiro, e que não amam o amigo e simultaneamente não olham para o amigo que amam. Este post não é uma criação literária, mas tão só um momento de reflexão que, por tão grande importância ter tido para mim, decidi partilhar com aqueles que aqui me lerem. A reflexão é individual e única, e como tal, não irei dissertar sobre a minha, prendendo qualquer leitor na sua criatividade crítica. (Devo no entanto realçar o facto de ter entendido a palavra amigo num duplo sentido, e a troca amorosa da cantiga como uma troca abstracta).

Amiga, do meu amigo

Amiga, do meu amigo
oí eu hoje recado;
que é viv'e namorado
doutra dona, ben vos digo.
Mais jur'a Deus que quisera
oír ante que mort'era.


Eu era maravilhada
porque tan muito tardava;
pero sempr'esto cuidava,
se eu del seja vingada.
Mais jur'a Deus que quisera
oír ante que mort'era.

Mui coitada per vevía;
mais ora non sei que seja
de min, pois outra deseja,
e leixou min que servía.
Mais jur'a Deus que quisera
oír ante que mort'era.

E a el mui melhor era,
e a min máis mi prouguera.

por Sancho Sanches


Voir un ami pleurer

Bien sûr il y a les guerres d'Irlande
Et les peuplades sans musique
Bien sûr tout ce manque de tendres
Il n'y a plus d'Amérique
Bien sûr l'argent n'a pas d'odeur
Mais pas d'odeur me monte au nez
Bien sûr on marche sur les fleurs
Mais voir un ami pleurer!

Bien sûr il y a nos défaites
Et puis la mort qui est tout au bout
Nos corps inclinent déjà la tête
Étonnés d'être encore debout
Bien sûr les femmes infidèles
Et les oiseaux assassinés
Bien sûr nos cœurs perdent leurs ailes
Mais mais voir un ami pleurer!

Bien sûr ces villes épuisées
Par ces enfants de cinquante ans
Notre impuissance à les aider
Et nos amours qui ont mal aux dents
Bien sûr le temps qui va trop vite
Ces métro remplis de noyés
La vérité qui nous évite
Mais voir un ami pleurer!

Bien sûr nos miroirs sont intègres
Ni le courage d'être juifs
Ni l'élégance d'être nègres
On se croit mèche on n'est que suif
Et tous ces hommes qui sont nos frères
Tellement qu'on n'est plus étonnés
Que par amour ils nous lacèrent
Mais voir un ami pleurer!

por Jacques Brel

sábado, outubro 20, 2007


A serenidade do mar, tranquilo naquela tarde de inicio de outono, ainda quente, mas já amarguradamente fresco, contrastava com o frenesim de sentimentos da tua alma. O leve nevar de areia que fazias acontecer incessantemente revelava o teu mal estar e a tua angustia, sintonizada com aquele tão nobre ódio à pessoa,pelo simples facto de ser pessoa, pela irrelevancia da sua existência, entrelaçada com a terrível irrenunciável grandeza da humanização da sua vida. A brisa que percorre os teus cabelos, mais curtos, mas que ainda ondulam ao sabor da melodia silenciosa do ar que o trespassa, como os arpoes mentais que perfuram a tua existência. De mãos dadas com a natureza, despiste-te de humanidade, vestindo-te de pensamentos, e na profundidade do teu desprendimento material orgânico, vegetas enterrando-te na areia, como que num funeral de ti mesmo, agendado ao segundo, destruído ao momento. Funeral de sofrimentos e mágoas que insistes em querer deixar para trás, mas que infinitamente te perseguirão, não te permitindo esquecer a humanidade que involuntariamente transportas, rejeitando-a, rejeitando-te, como rejeitas a dominação do teu domínio, quando te perdes nos sentidos, já cheirando as texturas das peles que te tocam, e que rejeitas, abrando os olhares, provando os sons do delírio da prisão dos odores tocados por ti, não por quereres, mas por seres. Essas crianças velhas que te enchem alegremente de raiva à sua passagem, deixando-te em delírio na mistura do som das suas vozes cansadas de emoções com o ranger profundo do mar calmo de fim de tarde, fogoso e colorido, como tu não queres mais ser, apenas te prendem quando te inundam a pele de sons quentes, fundindo o gelo negro em que te incorporaste, deixando.te a nu, desprotegido de quem és. Quando caiu o sol e o negro da noite clara de quarto crescente, na sua morte já, tu jazias já dento de ti, enterrado na areia que nevaste, chorando ainda lágrimas de sol, libertando-te do colorido prateado da noite que te envolve, ate te levantares e dares-me a mão, salvando-nos novamente, eternamente.

quinta-feira, outubro 18, 2007

Estar



Deito-me para trás, no sitio onde estou. com a cabeça encostada no corpo de com quem estou, miro as paredes do lugar onde estou, e depois, no tecto vazio, olho a profundidade infinita onde não estou, e para onde quero ir. Pois... ali já não estou mais, e abandono o corpóreo na reflexão de tantos outros, que a escreveram ou dela fizeram vida. Mas eu limito-me à reflexão incorpórea do que não são meus corpos, esses onde não estou. O tremor de temor do temido que sou acorda os passos daqueles que ali comigo não estão, mas a quem me abracei no infinito profundo do tecto em que penetrei. Estou onde não estou, com a sensação de estar em todos. Estou onde não quero, mas com quem quero, porque estou no nada do infinito do espaço onde estou e de onde me ausentei, com todos aqueles que quero estar, não estando, no espaço onde não estou, e onde não vou estar. Aqui estou deitado há mais de muito tempo, mas há muito mais tempo que eu não estou. Não sinto já o calor do corpo que me aquece a pele, e sinto o calor ardente da completude infinita da ausência presentemente ausente da mansarda em que me cabe estar, partilhando com outro corpo, que me aquece o coração que não existe e que dentro de mim não cabe não infinita magnanimidade do ser que sou fora dali, estando aqui onde não estou, acompanhado de uma multidão imensa que num só gesto abraço, na individualidade de cada um que não tem, no conjunto de todos que não são, no infinito da presença ausente do meu ser onde não sou devido, mas estou por a ele pertencer. Encosto a cabeça mais ainda para penetrar mais alem no tecto que me suspende, suspenso em mim, por cima de mim. Mas o teu toque leve nos meus cabelos reflectores das cores dos corpos que estão onde estou, cerra-me os olhos, prendendo-me infinitamente no infinito do sitio para onde estava, e onde nunca cheguei a ir, porque já estava.